Chega das mãos de algum amigo, de confiança ou não, gratuito ou custando uma merrequinha. Se já vem sequinha, esfarela, põe na seda, enrola, fecha, acende. Puxa, prende, solta. Passa pro próximo. Pra conseguir é um susto. Vem da mão de um criminoso, armado, tem que passar pela polícia, corre o risco de ser preso. Não é para todo mundo que pode mostrar, sob o risco de ser julgado e condenado, como drogado, doente, dependente. Legal é na Holanda, que eu posso entrar em um café, na esquina de casa e fumar tranquilamente.
O documentário Quebrando o tabu, do diretor Fernando Andrade, e que tem como âncora o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, reacendeu as discussões na mídia sobre a descriminalização do uso da maconha, a regulação do uso e
, consequentemente, a legalização da maconha. Apesar de não deixar claro, o documentário aponta três situações distintas dessa realidade: trata da descriminalização, mostra a importância da regulação do uso e menciona a legalização. Vamos a eles.
Descriminalização
Descriminalizar o usuário já é uma realidade. Desde a Lei 11.343, de 2006, o porte de drogas não mais prevê pena de prisão para a posse e consumo, ou seja, houve uma descriminalização formal, pois não pode mais ser considerada crime, mas não houve uma perda do caráter de ilícito. Houve, ainda, uma despenalização, segundo o artigo 128, da mesma Lei, que suaviza a resposta penal, transformando-a em penas alternativas e tratamento, segundo o critério de cada juiz. Na realidade de adolescentes em conflito com a lei, o menino não é sentenciado com a internação, medida mais gravosa do sistema, mas é encaminhado para a liberdade assistida ou prestação de serviços à comunidade.
Em outros termos, não se prende ninguém por estar apenas portando maconha. No entanto, se você porta 1kg de maconha “para uso próprio” há de se estranhar. Não há fórmula certa, o policial deve se ater às evidências se há ou não tráfico, como a presença de uma grande quantidade de dinheiro em poder da pessoa, além de uma quantidade considerável da droga, presença de diferentes drogas, presença de balança de precisão, ou de trouxinhas de maconha em porções individuais, como as preparadas para vendas em menor quantidade. O juiz irá decidir, durante o processo, se as evidências caracterizam aquilo como tráfico ou não.
Regulação do uso
Não se pode, contudo, vitimizar o usuário. Nem todo usuário é um doente, dependente químico. Os defensores da regulação do uso pecam por tratar todos os usuários como doentes que precisam de tratamento. Nem tanto ao céu, nem tanto ao inferno. Nem todos os que portam drogas são traficantes. Bem como nem todos são doentes.
Cabe ressaltar que, a dependência química é caracterizada pelos efeitos que o uso da droga causa no organismo do usuário, bem como em seu meio social, os repetidos abusos da substância, ou das substâncias usadas, o prejuízos funcionais do indivíduo em sociedade, dentre outros. Existem pessoas com as vidas destruídas pelo uso da droga, como há indivíduos que fazem uso eventual, não só da maconha, mas de outras substâncias, sem prejuízos em curto e médio prazo. A política de saúde para tratamento de dependentes químicos independe da regulação do uso. O SUS precisa estar preparado para receber aquele indivíduo com problemas, independente do julgamento moral ou penal sobre ele, o que não está acontecendo já há algum tempo. Para quem trabalha com essa demanda, ou para quem experimenta o problema na pele, enxerga dificuldades bem maiores do que descriminalização, e certamente, tão polêmicas quanto. Depois de um século de lutas da reforma psiquiátrica, hoje pode-se afirmar que um dos grandes problemas da família que tem um dependente químico, e de quem trabalha com ele, é a impossibilidade de interná-lo para tratamento sem o seu consentimento, principalmente quando o julgamento dele está comprometido justamente pelo uso da droga. Polêmico, não?
Muitos usuários eventuais não são dependentes químicos. Merecem ser presos? Não. Devem ser tratados? Também não. Então, legalizar a droga será uma boa? Pra alguns deles, sim. Pra outros, nada vai mudar.
Legalização
Eu, você, o seu amigo da faculdade, o executivo, o servidor público. Esse tipo de usuário será beneficiado pela legalização, ou até mesmo pela regulação do uso controlado. A maconha será mais livre de impurezas, será vendida em locais livres da insalubridade das bocas de fumo, passará por controle de qualidade e você não terá que enfrentar um cara armado para comprá-la. Muito bom para nós, que podemos pagar por isso. Com tantos benefícios, essa será uma maconha cara. Uma
alta carga de impostos será atribuída a ela, com a justificativa de desestimular o uso. Então, o principal argumento dos defensores da legalização acaba manchado: como impedir o tráfico nas favelas? A venda ilegal? Bom, não pode. É de conhecimento de todos as apreensões de contrabando de cigarros de tabaco, legalizados, apreendidos nas fronteiras, sem nota fiscal. Qual o impedimento de que a mesma coisa aconteça com a maconha? A fiscalização. E o nome disso é repressão. Mas é o que já tentam fazer agora, não é? Sim. E está dando certo? Bom… não.
Mais uma vez, o prejudicado é o morador da favela, que continua convivendo com o tráfico, da maconha sem nota fiscal e das outras drogas não legalizadas, consumidas em todas as esferas sociais, afinal, não tem cocaína no café da esquina. E o pior: o pobre usuário eventual de maconha, compra a porcaria do beck de 5 reais, na mão do cara armado, ou no botequim da esquina, cheio de mato e impurezas. O cara de classe média, compra na esquina de casa, por 25 reais, com toda a segurança e controle de qualidade. Isso é Brasil.
E quanto à diminuição da criminalidade? Vai existir, com certeza. Menos pessoas subindo o morro pra comprar maconha e menos aviõezinhos na descida do morro pra distribuir pros playboys. Contudo, citando o filme Cidade de Deus, o tráfico dá seu jeito de sobreviver. Ainda existirão outras drogas vendidas na favela, alimentando o tráfico e acabando com a vida de dependentes químicos e seus familiares. E como resolver isso?
A grande preocupação está nos dependentes químicos, mas a regulação do uso só visualiza o que fazer com os usuários de maconha, a droga mais leve entre aquelas que são combatidas hoje com a repressão.A discussão sobre os leitos de tratamento em hospitais públicos, habilitação de clínicas de tratamento, formação de profissionais capacitados para tratar essa população, campanhas mais honestas e claras sobre as drogas, é mais uma vez deixada de lado. Como o próprio FHC fala no documentário, não se trata apenas de criminalizar e esconder na cadeia o problema, é preciso discutir. Mas a discussão, como sempre, passa primeiro pelo direito do usuário de classe média, e não pela necessidade daqueles que buscam tratamento através da rede pública de saúde.
O fato é: você quer usar a maconha de forma regular, porque é um direito seu, porque outras drogas mais danosas como álcool e tabaco estão ao alcance de qualquer pessoa, porque você quer ter o direito de comprar uma maconha não batizada, e você não quer ter que passar os sábados em serviços comunitários porque estava com alguns becks no carro. Ok. Você está certo e isso deve ser discutido.
O argumento falha quando se tenta colocar a regulação do uso como uma espécie de salvadora da violência, da guerra com o tráfico e do uso controlado. O tráfico não acaba, a violência não acaba, porque você pode comprar a sua maconha na farmácia. Ela não deixa de ser vendida na favela ilegalmente. Os hospitais não ganham mais leitos de tratamento por conta disso. A discussão acaba se misturando em termos de que políticas de saúde são necessárias para o tratamento de dependentes químicos, que, mais uma vez repito, não é a realidade de todos os usuários, principalmente de maconha, e o direito de usar a droga de forma controlada.
A questão tem que ser discutida de forma real e honesta? Então vamos lá. Assuma o risco de nada mudar.